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"A Cidade e as Serras", Capítulo XII, de Eça de Queirós

"A Cidade e as Serras", Capítulo XII, de Eça de Queirós

Update: 2021-05-21
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Capítulo XII, em audiolivro, do romance “A Cidade e as Serras” de Eça de Queirós.

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“A Cidade e as Serras” é um desenvolvimento do conto “Civilização”, cuja publicação em livro ocorreu em 1901, já depois da morte do autor. No romance é relatada a história de Jacinto, tendo como narrador José Fernandes, um amigo fraternal. Jacinto nasceu e viveu toda a sua vida num palácio dos Campos Elísios, em Paris. Apesar de rodeado de conhecimento, de tecnologia e de luxo, vive aborrecido e decide regressar a Tormes, na região do Douro.


TRANSCRIÇÃO

XII

Assim chegou Setembro, e com ele o meu natalício, que era a 3 e num domingo. Toda essa semana a passara eu em Guiães, nos preparos da vindima, — e logo cedo, nesse domingo ilustre, me fui debruçar da varanda do quarto do saudoso tio Afonso, vigiando a estrada, por onde devia aparecer o meu Príncipe, que enfim visitava a casa do seu Zé Fernandes. A tia Vicência, essa, desde madrugada, andava atarefada pela cozinha e pela copa, porque, desejando mostrar ao meu Príncipe «o pessoal» da serra, convidara para jantar algumas famílias amigas, dos arredores, as que tinham carruagens ou carroções, e que podiam, pelas estradas mais seguras, recolher tarde, depois de um bailarico campestre, no pátio, já enfeitado para esse efeito de lanternas chinesas. Mas logo às dez horas me desesperei, ao receber, por um moço da Flor da Malva, uma carta da prima Joaninha, em que dizia «a pena de não poder vir porque o Papá estava desde a véspera com um leicenço, e ela não o queria abandonar». Corri indignado à cozinha, onde a tia Vicência presidia a um violento bater de gemas de ovos dentro de uma imensa terrina.

— A Joaninha não vem! Sempre assim! Diz que o pai tem um leicenço… Aquele tio Adrião escolhe sempre os grandes dias para ter leicenços, ou para ter a pontada…

A boa face redondinha e corada da tia Vicência enterneceu-se.

— Coitado! Será em sítio que não se pudesse sentar na carruagem! Coitado! Olha, se lhe escreveres, dize-lhe que ponha um emplastrozinho de folhas de alecrim. É com que teu tio se dava bem.

Eu gritei simplesmente da janela para o moço, que dava de beber ao burro no pátio:

— Diz à sr.ª D. Joaninha que sentimos muito… Que talvez eu lá apareça amanhã.

E voltei à janela, impaciente, porque o relógio do corredor, muito atrasado, já cantara a meia hora depois das dez e o Príncipe tardava para o almoço. Mas, mal eu me chegara à varanda, apareceu justamente na volta da estrada Jacinto, de grande chapéu de palha, na sua égua, seguido do Grilo, que se escarranchava, sobre o albardão da velha égua do Melchior, também de chapéu de palha, e abrigado sob um imenso guarda-sol verde. Atrás, um moço com uma maleta à cabeça. E eu, na alegria de avistar enfim o meu Príncipe trotando para a minha casa de aldeia, no dia dos meus trinta e seis anos, pensava noutro natalício, no dele, em Paris, no 202, quando, entre todos os esplendores da Civilização, nós bebemos tristemente ad manes, aos nossos mortos!

— Salve! — gritei da varanda. — Salve, domine Jacinthe!

E entoei, para o acolher, num alegre tarantantan, o «Hino da Carta»!

— Isto por aqui também é lindo! — gritou ele de baixo. — E o teu palácio tem um soberbo ar… Por onde é a porta?

Mas eu já me precipitava para o pátio — onde Jacinto, apeando, contou alegremente os tormentos do Grilo, que nunca montara a cavalo, e não cessara de berrar ante os perigos daquela aventura.

E o digno preto, ofegante, lustroso de suor, e lívido sob o esplendor da sua negrura, exclamava, apontando com a mão trémula para a pobre égua, que solta, de cabeça pensativa, parecia de pedra, sobre as patas mais imóveis que marcos:

— Pois se o siô Fernandes visse! Uma fera, que nunca veio quieta. Sempre para a esquerda, sempre para a direita, pé aqui, pé além! Só para me sacudir! Só para me sacudir!

E não resistiu. Com a ponta do guarda-sol atirou uma pontoada vingativa contra a égua, sobre o albardão.

Subindo a escadaria ligeira, penetrando no alegre corredor, com a sua janela ao fundo engrinaldada de roseirinhas, Jacinto louvava grandemente a nossa casa, que o repousava das rijas muralhas, das grossas portas feudais de Tormes. E no seu quarto agradeceu os cuidados maternais da tia Vicência, que enchera de flores os dois vasos da China sobre a cómoda, e adornara a cama com uma das nossas colchas da Índia mais ricas, cor de canário, com grandes aves de ouro. Eu sorria, enternecido. Então estreitámos os ossos num grande abraço, pelo natalício… «Trinta e oito, hem, Zé Fernandes?» — «Trinta e quatro, animal!» E o meu Príncipeabrindo logo a mala, sóbria maleta de filósofo, ofereceu os «nobres presentes, que são devidos», como diz sempre o astuto Ulisses na «Odisseia». Era um alfinete de gravata, de safira, uma cigarreira de aço fosco, com um florido ramo de macieira em delicado esmalte, uma faca para livros de velho lavor chinês. Eu protestava contra a prodigalidade.

— É tudo das malas de Paris… Mandei-as abrir ontem à noite. E tomei a liberdade de trazer esta lembrança à tua tia Vicência. Não vale nada… É só por ter pertencido à princesa de Lamballe.

Era uma caldeirinha de água benta, em prata lavrada, de um gosto florido e quase galante.

— A tia Vicência não sabe quem é a princesa de Lamballe, mas fica encantada! E é uma garantia, porque ela suspeita da tua religião, como homem de Paris, da terra das impiedades… E agora, lavar, escovar, e almoçar!

A tia Vicência pareceu toda surpreendida, e logo encantada com o meu camarada, que ela supusera realmente um príncipe, arrogante, escarpado e difícil. Quando ele lhe ofereceu a caldeirinha, com um delicado pedido «para se lembrar dele nas suas orações», duas largas rosas, mais róseas e frescas que as rosas que enchiam a mesa, cobriram as faces redondas da boa senhora, que nunca recebera tão piedoso presente, com tão linda expressão. Mas o que sobretudo a cativou foi o tremendo apetite de Jacinto, a entusiasmada convicção com que ele, amontoando no prato montes de cabidela, depois altas serras de arroz de forno, depois bifes de numerosa cebolada, exaltava a nossa cozinha, jurava nunca ter provado nada tão sublime. Ela resplandecia:

— Até faz gosto, até faz gosto… Ora mais uma destas batatinhas recheadas…

— Com certeza, minha senhora, até duas! As minhas rações, em mesas destas, tão perfeitas, são sempre as de Gargântua.

— Não cites Rabelais, que a tia Vicência não conhece os autores profanos! — exclamava eu, também radiante. — E prova esse vinho branco cá da nossa lavra, louvando Deus que amadurece tal uva.

E o almoço foi muito alegre, muito íntimo, muito conversado, sobre as obras de Jacinto em Tormes, e a sua creche que entusiasmava a tia Vicência, e as esperanças da vindima, e a minha prima Joaninha, que tinha o papá doente, e o péssimo estado dos caminhos. Mas o enternecimento maior foi quando, ao servir o café, o criado pôs ao lado de Jacinto um pires com um pau de canela, o seu estranho e costumado pau de canela.

Não esquecera a tia Vicência! Ali tinha o seu pauzinho de canela! — Queria que ele, em Guiães, continuasse os seus hábitos como em Tormes… E aquele pau de canela foi o símbolo de adopção do meu Príncipe como novo sobrinho da tia Vicência.

Ela em breve recolheu à cozinha, aos preparativos do banquete. Nós fumámos um preguiçoso charuto no jardim, ao pé do repuxo, sob a recolhida sombra do cedro. Depois, inexoravelmente, como proprietário, mostrei ao meu Príncipe a propriedade toda, com desapiedada minuciosidade, sem lhe perdoar um campo, um regueiro, um pé de vinha. Só quando a sua face se começou a opar e a empalidecer pela saciedade, e que do entendimento totalmente atordoado só lhe escorria um vago — «muito bonito! bela terra!» — é que voltei os passos para casa, contornando ainda numa volta larga para lhe mostrar o lagar, uma plantação de aspargos, e o sítio onde existira a ruína de um velho castro romano. Ao penetrarmos de novo, pelo jardim, na fresca sala, ainda o empurrei, como uma rês, para a livraria do meu bom tio Afonso, para lhe mostrar as preciosidades, uma magnífica crónica de D. João I por Fernão Lopes, a primeira edição do «Imperador Clarimundo», uma «Henríada», com a assinatura de Voltaire, forais de el-rei D. Manuel, e outras maravilhas. Ele respirava fechando o derradeiro pergaminho, quando eu o arrastei à adega, para que ele admirasse a famosa pipa, que tinha, em relevo, na madeira do tampo, as complicadas armas dos Sandes. Eram quatro horas, o meu Príncipetinha o ar esgazeado e lívido. Cravando nele os olhos ferozes, olhos em que eu mesmo sentia reluzir a ferocidade, declarei «que agora íamos ver a tulha». Mas então, com a mão nos rins, murmurou, humildemente, num murmúrio de criancinha:

— Não se me dava de me sentar um bocadinho.

Então tive piedade, abri as garras, deixei que ele se arrastasse atrás de mim, para o seu quarto, onde descalçou logo as botas, se atirou para um fresco canapé forrado de fresca ganga, murmurando, num abatimento profundo:

— Bela propriedade!

Consenti generosamente que ele adormecesse, — e eu mesmo desci a verificar se a Gertrudes dispusera bem as escovas, as toalhas de renda, no quarto onde os convidados, em breve, ao chegar, lavariam as mãos, escovariam a poeira da estrada. E justamente, uma caleche rodava no pátio, a velha caleche do D. Teotónio, com as duas éguas ruças. Espreitando da janela descobri, com prazer, que chegava só, de gravata

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